Com quase um ano de atraso, o canal Paramount Channel finalmente trás ao Brasil The Handmaid’s Tale (baseada na obra original de Margaret Atwood, O Conto da Aia), o sucesso da Hulu em versão dublada com opção de áudio original e legenda dinâmica. O primeiro episódio será exibido em 11 de março e as operadoras de TV por assinatura Oi, SKY e Vivo estarão com sinal aberto para todos os assinantes. Os clientes SKY pós-pago poderão degustar a programação do Paramount Channel de 9 a 18 de março; já os clientes Oi e Vivo terão a mesma opção de 7 a 19 de março.
ALERTA DE SPOILER: Este artigo contém informações sobre os principais acontecimentos do episódio. Continue a ler por sua conta e risco.
Uma distopia é uma sociedade indesejada e assustadora, onde governos totalitaristas e desastres ambientais são cenários de um futuro desolador e desumano. A maioria das distopias que vemos tem como pano de fundo uma versão cyberpunk, como The 100, e é aqui que está o grande diferencial de The Handmaid’s Tale, que nos mostra que o “de antigamente” pode ser muito pior do que imaginamos.
Em um futuro próximo, a contaminação ambiental desenfreada causa um efeito inesperado na sociedade: a maioria das mulheres se tornou estéril. Para garantir a sobrevivência da população, um grupo fundamentalista cristão de extrema direita planeja um golpe de Estado sem precedentes, mata o Presidente, coloca a culpa em terroristas Islâmicos e toma o controle dos Estados Unidos (ou parte dele). A República de Gilead tem início. Esse governo totalitarista “recruta” as poucas mulheres ainda férteis, que são realocadas nas casas da elite e submetidas a estupros ritualizados por seus mestres, de modo a gerarem seus filhos.
Testemunhamos esse novo regime pelos olhos de Offred (Elisabeth Moss, de Mad Men). Durante uma tentativa de fuga, seu marido é executado e sua filha é abduzida. Por ser uma mulher fértil, é enviada para o Centro Vermelho, para receber treinamento como uma Handmaid (aia, serviçal). Lá, ela reencontra sua amiga de faculdade Moira (Samira Wiley, de Orange is the New Black), uma mulher homossexual que não se resignará a uma vida de eterna servidão sem lutar pela liberdade.
O termo Handmaid remete à história bíblica de Raquel, esposa de Jacó. Como Raquel não podia conceber filhos, ela sugere que o marido emprenhe a serva Bila e, assim, tenham filhos.
Offred tem esse nome pois seu mestre é o Comandante Fred Waterford (Joseph Fiennes, de American Horror Story), e ela é “de Fred”. Sozinha na nova casa de subserviência, encontra companhia em outra Handmaid, Ofglen (Alexis Bledel, de Gilmore Girls), pois Handmaids sempre devem andar acompanhadas. Mas, será que Ofglen é realmente confiável? E os outros integrantes da casa, como a Martha – espécie de governanta – Rita (Amanda Brugel, de Orphan Black), o motorista Nick (Max Minghella, de The Mindy Project), e a esposa do Comandante, Serena Joy Waterford (Yvonne Strahovski, de Chuck), será que algum deles é um Olho da República? Até onde Offred deverá ir para sobreviver e, quem sabe, conseguir resgatar sua filha?
O visual é muito bonito, remetendo aos tempos da colonização. As casas são todas com decoração de época, assim como as vestimentas, dando a impressão de que aquela é uma realidade deliberadamente fabricada para controlar seus integrantes. As tomadas também ajudam a manter o clima de ambiente abafado, com planos fechados e sem movimentação, onde o menor erro será o suficiente para retirá-lo de cena para que receba sua punição. A trilha sonora também está perfeita, mantendo a impressão de suspense e medo constante. Até mesmo o estilo de filmagem remete aos filmes das décadas de 30 e 40, que utilizavam o processo Technicolor (reparem na saturação das cores, principalmente no vermelho e no azul).
Essa não é uma série para quem é mais sensível ou suscetível a imagens fortes. Por mais “delicada” que tenha sido a cena do estupro cerimonial, é uma violação íntima absurdamente desagradável de acompanhar. Digo “delicada”, pois não houve nenhuma tentativa de erotizar o ato e o foco não foi no corpo da atriz, mas não houve delicadeza com a personagem, que é tratada como gado de procriação. Seu posicionamento – entre as pernas da esposa – enquanto o mestre mantem contato visual com ela, é muito chocante. As Handmaids literalmente são colocadas no papel de útero e não passam de um órgão reprodutor.
“Mas, porque não fazem um procedimento de inseminação artificial?”, é a pergunta de qualquer pessoa com alma. Pois bem, o novo governo não acredita na ciência e hormônios artificiais são totalmente banidos. Eles creem que foram as invenções do mundo moderno que causaram as mazelas que vivem e, portanto, exigem que todos sigam métodos mais rudimentares possíveis. A Martha deve sovar o pão na mão e a Handmaid deve ser emprenhada pelo método tradicional. Sem contar que, por ser uma sociedade patriarcal, o homem sempre escolherá a opção em que pode utilizar do corpo da mulher, que é considerada cidadã de segunda classe.
A República é formada com bases em preceitos bíblicos, mas vemos contradições em todo momento. Essa é uma sociedade sitiada e mantida sob controle militar. Em toda esquina vemos “Anjos” portando armamento pesado para manter as Handmaids “seguras”. Caso elas não sigam as leis de Gilead, punições severas lhes aguardam. Eu não sabia dizer se fiquei mais aliviado ao rever Janine (Madeline Brewer, de The Deleted) e perceber que ela não havia sido estuprada, ou em total choque ao descobrir que ela teve o olho direito arrancado a sangue frio. Afinal, para parir, não é preciso enxergar.
Como se essa selvageria não bastasse, ainda temos corpos de traidores do governo pendurados a céu aberto, servindo de exemplo. Interessante notarmos que esses exemplos são: o padre de outra religião; o medico que praticava abortos; e o homossexual. Notamos um paralelo com os dias de hoje e as críticas que ouvimos de certos setores da política; criticando o diferente da norma e fazendo de tudo para dissuadi-lo ou eliminá-lo. A semelhança com discursos de políticos da administração Trump é estarrecedora, principalmente pelo fato de seu vice ser defensor ferrenho de terapias de conversão para homossexuais.
Fica implícito que existem células de resistência contra esse governo e, como a informação é manipulada pela mídia, é impossível sabermos o real alcance desse golpe. A história se passa em alguma região de Massachusetts, mas ainda há partes não completamente dominadas, com uma menção de recente vitória na antiga região da Flórida. Talvez isso seja um sinal de mudança e esperança para Offred.
A série vem em um momento perfeito para dialogarmos sobre a crescente misoginia no mundo. A população mundial só cresce, mas o discurso da bancada cristã ainda é o de “crescei-vos e multiplicai-vos”, tratando temas como aborto e controle de natalidade como crimes contra a humanidade. Para eles, o corpo da mulher não passa de um recipiente para gerar novos filhos e não lhes cabe o direto de decidirem o que fazer com ele. Aqui temos um exemplo exagerado do que pode vir a acontecer se esses mesmos homens brancos continuarem a decidirem as regras por nós, mas é extremamente importante nos conscientizarmos que, se não tomarmos alguma atitude com urgência, esse futuro pode não ser apenas uma forma de “entretenimento”.
Minha única reclamação sobre a série está, como sempre, para a falta de atores negros. Alguns pontos da história original foram alterados para que não fosse necessário tocar no tema do racismo – diferente do material original, o marido e a melhor amiga de Offred são negros. Porém, a primeira vitima, nos primeiros cinco minutos da série, é um negro. E, além de Moira, só me recordo de mais uma Handmaid negra. De acordo com os produtores e a própria autora da obra original – que é consultora para a série – decidiram focar apenas no tema da misoginia, porém, ao reduzir essa parcela da população a apenas dois personagens, perde-se a oportunidade de discutir um tema tão importante. Talvez em temporadas futuras tenhamos esse enfoque, porém, por enquanto, fica a lacuna.
Por fim, estou investido na história de Offred e quero muito saber se ela conseguirá se reencontrar com a filha. Também quero saber qual será o destino das outras Handmaids e se a República continuará no comando sem nenhum antagonista para tentar tirá-los do poder. Acompanhemos.
Para quem se interessou pela trilha sonora (e pela maravilhosa música de encerramento), segue a lista:
The Handmaid’s Tale é exibida no Brasil pelo Paramount Channel aos domingos às 21:00, com reprise às segundas às 23:30.
Conheça os personagens de “The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia” #HandmaidsnoParamount #HandmaidsTale pic.twitter.com/ter0H0W1es
— Paramount TV Brasil (@ParamountTVBR) March 7, 2018
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Texto originalmente publicado no Apaixonados por Séries.