A trajetória de Malu (2024) vem lá da pré-estreia do filme no prestigiado Festival de Sundance no começo do ano e de lá para cá a expectativa para nós, o público brasileiro, de podermos finalmente assistir esse novo filme do diretor e roteirista Paulo Freire era gigante.
Só não era maior para o quão gigantes estão Yara de Novaes, Juliana Carneiro da Cunha e Carol Duarte nessa produção nacional e que aqui são um show de atuação. Os ares teatrais, o texto que varia entre o cômico e dramático, que impressiona e o debate narrativo que em entrega ao apresentar as relações humanas entre essas três mulheres da mesma família são o que compõe esse mosaico tão bonito, triste e poderoso que é Malu.
Inspirado em momentos e situações que viveu com a própria mãe, a atriz Malu Rocha falecida em 2013, Freire mergulha o espectador nesses conflitos e se debruça em analisar e expor os traumas geracionais dessa família. E Novaes, Cunha e Duarte são primordiais para fazer tudo acontecer, dar certo e entregar ao mesmo tempo personagens que podemos nos identificar como também de certa forma sentir uma certa repulsa.
É como se fosse um grande soco no estômago, ver e assistir Malu. Afinal, os problemas dessas três gerações de mulheres dessa família podem espelhar diversas questões e histórias que aconteceram na casa de qualquer um de nós brasileiros. Mas aqui são amplificadas e contadas de uma forma tão sensível, tão bonita e que realmente são capturadas pelo olhar de Freire de uma forma extremamente convidativa de se acompanhar e saber o que vai acontecer em seguida e como tudo vai se decorrer.
Malu começa, nos anos 1990, onde a representação dessa época, no advento da internet, e das redes sociais, dão um charme a mais para o filme (e para o ratio que é utilizado no longa) e que ajudam a contextualizar a história que nos apresenta para essa figura, quase como se fosse uma força da natureza, que é Malu (uma excelente Novaes), uma atriz de teatro já de meia idade que vive que com sua mãe Dona Lili (Cunha). Malu é uma atriz raiz, que acredita no poder da arte e de viver de arte, sabe daquelas um pouco militudas, excêntrica e que vive por contar histórias dos bons tempos de quando era mais jovem e que a arte era uma forma de crítica contra os tempos mais sombrios que o país passou alguns anos antes.
E logo de cara fica claro que Malu, é uma figura bem diferente da mãe, uma senhora um pouco mais conservadora , religiosa, e mais séria. E claro, uma mulher que é produto de um tempo e uma sociedade extremamente machista. E essa polarização entre as duas é contada e mostrada em uma das passagens que mais ajudam a definir como é essa relação, e como é o dia-a-dia dessas mulheres. Ao vermos Malu dar um chega para lá em um padre (Marcio Vito) que é convidado por sua mãe para lhe dar uns conselhos, temos a definição do que esperar entre essas duas mulheres daqui para frente.
É uma das melhores cenas do longa e meio que prepara o espectador para o turbilhão de emoções que vem em seguida. Afinal, o verdadeiro, ponto de partida de Malu é com a chegada de Joana (Duarte), de volta ao Rio de Janeiro depois de um tempo fora do país, e que vai passar um tempo na casa da mãe e que vive com a mãe dela e um colega (Átila Bee), também artista, negro e gay.
O retorno é celebrado e motivo de festa, encontros em restaurantes e tudo mais e fica claro também que a filha de Malu é bem mais pé no chão e realista com tudo do que a mãe. E fica claro também como essa dinâmica funciona, com Malu com Joana, Malu e Lili e também Lili e Joana. Freire estabelece logo de cara como essas relações são ao mesmo tempo profundas e também frágeis por conta das diferenças entre elas, seja de idades, de visões e de personalidades.
E na medida que os dias passam, as fissuras e conflitos entre essas três mulheres que dividem essa casa ficam mais intensos, mais frequentes, e as discussões e trocas de farpas acontecem mais e mais. A ideia de Malu é reformar o terreno que mora, perto de uma comunidade, e transformar num centro artístico para abrigar diversas atividades, entre elas um teatro.
Enquanto Malu pira com as ideias e confabula diversas coisas para fazer com o lugar, Joana é mais realista e procura achar uma forma de manter o projeto dentro das realidades financeiras da família. O texto de Freire sabe bem mesclar os momentos de discussão caóticos, acalorados, e alguns até que vemos o uso da violência, para outros onde essas mulheres trocam palavras de afeto, e atitudes de carinho uma com as outras.
Com poucos cenários e a casa sendo quase como uma personagem desse filme, Freire usa do espaço para ajudar a contar essa história. Na medida que as paredes desse local soam cada vez mais sufocadoras, o mesmo vale para o relacionamento entre elas. Novais entrega uma Malu desbocada, enérgica, e sem papas na linha, enquanto Cunha e Duarte trabalham em entregar personagens mais contidas, mais calmas, mas que batem de frente com a figura oposta de Malu em muitos sentidos.
Na medida que as coisas são ditas e que não podem mais serem ditas, Malu vai por navegar em questões que exploram o passado dessas mulheres, em umas das cenas Cunha tem um monólogo extremamente devastador e que ajudam a personagem não cair no fácil de ser a vilã da narrativa, e que servem para mostrar ao espectador um pouco mais de como essas dinâmicas funcionam e por que são o que são hoje em dia.
Entre momentos alegres e felizes, Malu faz um retrato maravilhoso, de partir o coração e poderoso sobre essas mulheres e seus papéis dentro dessa família nada convencional. O trabalho do trio principalmente é excelente, é emocionante, e extremamente minucioso em dar o tom que Freire quer para conseguir ao contar essa história. Um trabalho realmente primoroso por parte de todos os envolvidos.
Filme visto durante o Festival do Rio, em Outubro.
Malu chega nos cinemas nacionais em 31 de outubro