O movimento #MeToo, criado pela ativista Tarana Burke, sem dúvidas, foi um dos maiores acontecimentos em relação à mudanças estruturais na sociedade americana de maneira geral nos últimos tempos. E em um dos seus ápices, ou pelo menos um dos momentos que mais ganharam destaques, foi quando o movimento mirou Hollywood, parou na figura do mega produtor americano Harvey Weinstein e a matéria investigativa do jornal New York Times sobre ele lançada em 2017.
Mas o longa Ela Disse (She Said, 2022) é muito mais do que isso. É muito mais que apenas figura de Weinstein (que nem aparece direito) ou o movimento de denúncias que acontecia naquela época, que se pararmos para pensar nem parece ter acontecido há tempo assim, e ao mesmo tempo, com tanta coisa que aconteceu no mundo nos últimos 3 anos, esses acontecimentos de 2017, hoje, se parecem mais distantes do que foram.
E talvez essa seja a importância de Ela Disse ter esse lançamento, nesse momento, nessa temporada, e de nos fazer lembrar de o quão difícil foi para a dupla de jornalistas Megan Twohey e Jodi Kantor chegar no momento em que o botão de publicar e mandar para impressão aconteceu. Como fica claro no longa, Ela Disse não sobre só Weinstein, é sobre todo um sistema hollywoodiano que acobertava esse time de comportamento predatório num ambiente extremamente masculino e opressor.
Ela Disse nos entrega uma narrativa poderosa sobre investigação jornalística e a função da imprensa, em não só reportar os fatos, mas também desmembrar essa rede de mentiras, acordos de confidencialidade e seguir uma extensa lista de pagamentos para varrer diversos acontecimentos para debaixo do tapete. Assim, Ela Disse, mesmo que não seja perfeito, cumpre seu papel de uma forma muito digna, ao mostrar a dificuldade de se comprovar uma história, e acabar com anos de burburinhos, ele disse, ela disse que dominava Hollywood.
E para isso temos as duas jornalistas principais em busca dessa história, onde Ela Disse mescla ficção com realidade de uma forma que serve para alertar e mostrar os bastidores dessa investigação. Mesmo que o roteiro de Rebecca Lenkiewicz (baseado no livro das mesmas jornalistas), em diversos momentos, soe extremamente didático para explicar algumas questões como “O que são Acordos de Confidencialidade?” ou “Onde traçamos a linha do que é um assédio?” e tudo mais, a direção de Maria Schrader (da minissérie Nada Ortodoxa) consegue nos ambientar no dia-a-dia das jornalistas, suas vidas pessoais, e onde elas estavam profissionalmente, de uma forma muito interessante.
E a própria edição do filme faz a trama ser apresentada de uma forma extremamente ágil e que no final, garante que Ela Disse prenda sua atenção para sabermos como Megan e Jodi conseguiram driblar um sistema extremamente poderoso e cheio de artimanhas que funcionaram ao longo de quase 20 anos para silenciar mulheres sobre o que aconteceu com elas em ambientes profissionais e contra suas vontades.
E para o papel dessas jornalistas, Ela Disse escolheu a dedo duas atrizes para nos entregarem e humanizarem essas profissionais. Pode não ser o melhor papel da carreira de Carey Mulligan (principalmente depois do avassalador Bela Vingança), mas em Ela Disse, a atriz se mostra mais uma vez uma das mais talentosas atrizes que temos hoje em Hollywood. Mulligan está ótima, a melhor do elenco, domina a tela com uma presença que chama atenção e que demanda que o espectador olhe para onde ela está, o que ela está a falar, ou apenas, em algumas cenas, só por estar ali, refletindo, que por si, já é um show de interpretação dessa atriz que merecida mais destaque nas premiações.
E por outro lado, Ela Disse é sim o melhor papel da carreira de Zoe Kazan, uma atriz que a cada projeto demonstra seu talento e galga seu espaço em Hollywood a cada projeto que participa e uma para estar no radar de qualquer um fã de cinema.
E em Ela Disse, as duas em cenas, são pura combustão na medida que vemos como Megan (Mulligan) e Kantor (Kazan) caem de paraquedas no que tem rolado em Hollywood por anos e vão por desvendar informações que recebem, até que realmente chegam na pessoa atrás das cortinas, e que é o fator comum de muitas histórias de abuso, seja emocional ou físico, no ambiente de trabalho: o chefão da mega produtora americana Miramax e anos de história mal contadas e casos resolvidos com acordos financeiros e documentos jurídicos.
E Ela Disse se passa num contexto social super importante na história dos EUA e que a ajuda a dar um peso maior para essa história, seja nos momentos de paranoia ou até mesmo de ataques plantados em outras formas de comunicação. São os primeiros meses da administração Trump e isso dá para a dupla de jornalistas uma história tão grande que leva meses para ser esmiuçada para elas terem pessoas que topam falar com elas de forma oficial para a composição dessa matéria expositiva.
Ela Disse é o trabalho de checar com várias dessas fontes, as fazerem reviver essas dolorosas lembranças, e também, delas contarem, para as jornalistas e para nós o público, sobre o quão aqueles acontecimentos as mudaram como pessoas e suas vidas, um dos destaques fica para uma personagem em especial, uma ex-assistente da filial de Londres da Miramax e interpretada por Jennifer Ehle, que meio que representa várias figuras nessa personagem.
O trabalho que Schrader faz nesse tópico é fenomenal. Aqui nada é gráfico ou visualmente mostrado. É feito de uma forma como se fosse uma vaga lembrança. Uma poderosa, mas ludicamente mostrada e que foca no sentimento que as cenas queriam passar. Afinal, essas vítimas já passaram por esses acontecimentos e não há a necessidade de revisitar, visualmente, suas dores.
Assim, Ela Disse acaba por ser mais sobre o trabalho dessas jornalistas, seus editores e colegas, interpretados por Patricia Clarkson e Andre Braugher, para chegarem no trabalho de coletar depoimentos e provas reais de tudo o que aconteceu para validar o que essas mulheres dizem. Ela Disse tem também se apresenta com um ar de documentário, afinal, muito das pessoas envolvidas, principalmente de celebridades como Ashley Judd (que aparece como ela mesma) são citadas, mas em sua novelização dá a chance de entrarmos de cabeça nessa história e conhecer mais do lado mais pessoal e humano de todos os elementos envolvidos, seja as vítimas ou as jornalistas que trabalharam para dar uma luz para esses eventos tão sombrios.
No final, Ela Disse entrega um dos mais importantes filmes da temporada. A must-watch, sem dúvidas.
Ela Disse em cartaz nos cinemas nacionais.