Quando saiu o primeiro trailer de Boca a Boca a sensação que tivemos era que a produção da Netflix iria seguir um rumo parecido com o outro seriado nacional da plataforma que estava prestes a ser lançado também, o Reality Z (leia mais aqui), mas ao assistir a sua 1ª temporada vimos que a série nacional entregou uma coisa completamente diferente. Quem esperava farofa, recebeu conceito.
Boca a Boca faz uma grata surpresa e surpreende ao falar de situações de uma forma pouco vista em produções nacionais, onde o seriado produzido e criado por Esmir Filho explora sexualidade e uma pandemia de uma forma bastante interessante.
Com uma forte estética visual que dá um charme completamente único, Boca a Boca faz uma dessas produções que precisam ser descobertas aos poucos, onde sua qualidade, e o famoso “e aí é bom?“, será passada de boca em boca por quem assiste, afinal, o serviço de streaming responsável por ela nem se dá o trabalho de divulgar propriamente dita.
Os paralelos da produção com a série americana Euphoria (HBO) e a produção britânica Skins são gigantes, mas para mim Boca a Boca segue seu próprio caminho ao tratar da vida dos jovens da cidade pequena de Progresso com a questão da doença misteriosa que invade as bocas dos moradores, onde o texto da série pega essa pandemia para explorar o pior lado da nossa sociedade e seus pré-conceitos. Progresso só no nome mesmo.
As fortes cores, o visual neon, e a trilha sonora meio psicodélica fazem o espectador cair de cabeça no mundo criado pelos produtores, onde a série faz das produções mais bonitas visualmente na Netflix e não só pelas misturas de cores e os visuais moderninhos, mas por todas as decisões técnicas escolhidas de como as cenas são filmadas e editadas. Um acerto da produtora Gullane.
Claro, ainda há muito chão de terra de Progresso para se percorrer, mesmo com atores globais conhecidos do público, o ar mais teatral de Boca a Boca pode não agradar muitos, às vezes o texto sai duro, as interações soam um pouco falsas, mas como falamos tudo em volta contribui para esses pequenos detalhes passarem despercebidos. E isso vale para atores veteranos como Bianca Byington que retorna depois de alguns anos sem aparecer e interpreta uma socialite da cidade, e ainda Flávio Tolezani como o pai de um dos alunos do colégio.
Os atores Bruno Garcia, um empresário que cuida de bois, e a incrível Denise Fraga interpretam duas figuras antagonistas para a trama e que surpreendem. Na série, Fraga realmente rouba todas as cenas como a diretora Guiomar, um dos nomes mais vocais da moral e dos bons costumes da cidade. A personagem de Fraga é uma das mais complexas que já passaram no rol de personagens de séries nacionais da Netflix e realmente é um dos motivos que valem assistir Boca a Boca.
A desconstrução que a personagem sofre ao longo dos 6 episódios é incrivelmente bem trabalhada, principalmente se levarmos em conta os momentos finais do seriado que prometem bastante para a rígida diretora, caso a série venha ser renovada para um segundo ano, o que seria uma besteira colossal da Netflix de não se fazer.
Mas claro, os verdadeiros protagonistas de Boca a Boca são os jovens, aqui liderados pelo trio Fran (Iza Moreira, uma revelação), Alex (Caio Horowicz, vindo de uma crescente boa de produções nacionais) e Chico (Michel Joelsas, super talentoso), onde cada um deles tem arcos próprios que são desenvolvidos ao longo da temporada. A garota com toda a questão que envolve a doença da mãe Dalva (Grace Passô, ótima) e a perda da irmã, o personagem de Horowicz com a sua rebeldia (às vezes um pouco maçante) contra o pai empresário, e principalmente toda a questão de Chico sobre se encontrar sexualmente e o polêmico caso com um dos peões da fazenda, o jovem Maurílio (Thomas Aquino). Numa versão americana da série, o ator Timothée Chalamet poderia interpretar qualquer um dos protagonistas que estaria tudo bem. Descrição melhor para a dupla não tem. E juntos, o trio de protagonistas são os responsáveis por fazer a trama fluir na busca das questões e das perguntas que envolvem a tal doença que chega ao colégio e traz discussões sobre as irresponsabilidades dos jovens em alguns momentos.
Acho que a temporada consegue achar um meio termo entre construir a jornada deste grupo dentro da primeira temporada, e sobre a doença em si, temos durante os primeiros episódios uma visão bastante ampla de como a cidade funciona, e como o vírus misterioso afeta os jovens. Os paralelos com a realidade do Brasil, e do mundo, por conta do coronavírus são bastante sentidos talvez por isso que a conexão com a série acaba por ser grande.
Os destaques do primeiro ano ficam com os episódios 1×02- sextou/segundou, 1×04 – a fim de real? e o combo final 1×05 – unfollow e 6 – Estamos todos doentes, onde a trama engrena de vez. Como boa parte das séries que tramas assim, Boca a Boca se preocupa mais em mostrar como a doença afeta as relações pessoais, e sociais, dos personagens muito mais do que mostrar suas origens e dar explicações científicas sobre ela, claro, elas chegam, mas como a doença afeta os moradores é que se mostra uma história muito mais poderosa de se acompanhar.
No final, Boca a Boca faz um trabalho cuidadoso de contar uma história sobre preconceitos, sexualidade, busca por união de uma comunidade, e fora da curva para produções nacionais focadas para o público adolescente e teen, que são os mais vocais nas redes sociais. Boca a Boca, excepcionalmente, entrega um acerto da Netflix que tem errado mais que acertado ultimamente.
Boca a Boca disponível na Netflix