O drama norueguês Thelma, dirigido por Joachim Trier e selecionado para representar seu país no Oscar 2018 entrou recentemente no catálogo da Netflix. Confira nossa análise do filme, que traça um paralelo com obra do sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman. [contém spoilers!]
O filme conta a história de uma jovem garota nos seus 20 e poucos anos (Eili Harboe) que se muda para a cidade grande, longe de seus pais (Ellen Dorrit Patersen e Henrik Rafaelsen), para cursar a faculdade de Biologia. Sua família é extremamente conservadora. Católicos fervorosos, induzem Thelma a pensar que qualquer tipo de comportamento fora dos padrões podem levá-la a queimar no inferno. Isso inclui consumo de álcool, irresponsabilidade dos estudos, relações afetivas e até amizades.
Thelma, poucos dias depois de começar a faculdade, faz amizade com uma garota do curso de Química, Anja (Kaya Wilkins). As duas criam um laço grande e se tornam quase inseparáveis. Ao lado de Anja, ela experimenta o novo e desconhecido: álcool, cigarros, festas e baladas. A relação se intensifica quando Anja a beija, e Thelma, desejando-a de volta, reprime sua vontade e resulta em um ataque epilético. A partir daí, o episódio se repete toda vez que é trocada qualquer tipo de intimidade entre as duas garotas. Ela procura buscar o que há de errado com ela. Reza para ser perdoada, confessa que consumiu álcool para os pais, aos prantos.
Ao longo do filme, é mostrado também que a protagonista possui “poderes” sobrenaturais: consegue fazer pessoas desaparecerem, se teletransportarem para longe. Isso ocorre toda vez que ela deseja que alguém se afaste dela e, concluindo que Anja lhe desperta sentimentos “proibidos”, faz com que a garota desapareça – sem nem se dar conta do que fez.
A história segue com Thelma voltando para casa após o desaparecimento de Anja, considerando a hipótese de que possa ser sua culpa. Após confissões de seus desejos e intenções com a mesma, os pais concluem que foi sua filha que, de fato, fizera a garota desaparecer, pois já havia feito isso uma vez aos 6 anos de idade, com seu irmão ainda bebê: ela transportara a criança para um lago congelado, matando-o.
Por fim, os pais de Thelma concluem que a solução é sacrificá-la, já que a mesma nunca terá controle de seus dons (vistos pelos mesmos como uma maldição, um castigo). Sentindo a decisão, ela usa os poderes para matar o pai, e abandona a mãe.
A partir daí, a garota consegue finalmente ter o controle de seus poderes e trazer Anja de volta. O que a impedia de controlá-los era a repressão, o medo de seus pais que a proibiam de ser quem ela verdadeiramente era.
O sobrenatural do filme é, na realidade, uma metáfora, um símbolo da força e essência de Thelma. Seus poderes são quem ela realmente é, que eram vistos como pecados por seus pais, por não se encaixar em seus devidos padrões por serem “errados” aos olhos da família. Isso culminou na tragédia devido sua dor, que só podia ser aliviada ao se distanciar de seu pai e sua mãe, a libertando.
Sociedade pós-moderna: O conceito da modernidade líquida de Bauman
Podemos dizer que a modernidade líquida é a época atual em que vivemos. É o conjunto de relações e instituições, além de sua lógica de operações, que se impõe e que dá base para a contemporaneidade. É uma época de liquidez, de fluidez, de volatilidade, de incerteza e insegurança. É nesta época que toda a fixidez e todos os referenciais morais da época anterior, denominada pelo autor como modernidade sólida, são retirados de palco para dar espaço à lógica do agora, do consumo, do gozo e da artificialidade.
Antes de Bauman criar o conceito de modernidade líquida, já Marx e Engels caracterizavam a modernidade como o processo histórico que derretia todas as instituições de outras épocas, como a família, a comunidade tradicional (culturalmente peculiar e fechada para estrangeiros) e a religião. O objetivo da transição proposta pela modernidade era questionar cada ponto da vida, descartando a irracionalidade e a falta de justificativa plausível que cada objeto continha.
Quando não há mais tais referenciais, a vida passa a ser entendida como projeto individual. São estes: classe, religião, família, nacionalidade e ideologia política. Na modernidade líquida os indivíduos não possuem mais padrões de referência, nem códigos sociais e culturais que lhes possibilitassem, ao mesmo tempo, construir sua vida e se inserir dentro das condições de classe e cidadão.
Chega-se no entender de Bauman a era da comparabilidade universal, onde os indivíduos não possuem mais lugares pré-estabelecidos no mundo onde poderiam se situar, mas devem lutar livremente por sua própria conta e risco para se inserir numa sociedade cada vez mais seletiva socialmente.
A relação da modernidade líquida com a obra
Na explicação de Bauman, é estabelecida uma relação direta com o consumo, à transformação das relações sociais em mercadoria, portanto, da própria identidade em mercadoria. Isso pode ser visto principalmente no processo de desregulamentação política, social e econômica que se manifesta na expansão livre dos mercados mundiais, no desengajamento coletivo e esvaziamento do espaço público.
No caso projeto disciplinar, a relação é direta com o conceito do antigo sólido e do atual líquido (pós-moderno).
O conceito do sólido, por definição, é algo que se pode tocar, ter controle, manusear, segurar e até guardar; o líquido, por sua vez, é algo que escorre, que não é possível segurar por muito tempo, que não se controla, não se molda.
Relacionando com a história do filme “Thelma”, o sólido seria o primórdio: a ideia dos pais moldarem sua própria filha utilizando conceitos antigos e não discutíveis, já feitos, encaixados, “sólidos”. A religião, o certo e o errado, a sexualidade e rotina de Thelma já estão decididas.
O descobrimento, os pensamentos e os desejos da própria garota, que partem de si mesma, entretanto, são outros. Partem da fluidez, de seus momentos e suas próprias escolhas. Com sua idade, existe a insegurança, o medo – entretanto a curiosidade – do desconhecido, a incerteza.
Numa sociedade pouco mais antiga, Thelma se relacionaria com um garoto. Casariam, teriam filhos. Cuidaria das crianças e da casa, cozinharia para seu marido, iria à igreja: coisas e situações que seus pais a encaixariam. Seus próprios desejos, numa sociedade mais moderna, entretanto, seriam outros. Seriam baseados em sua liberdade, sua escolha, fluidez e liquidez. Não há necessidade de ser encaixada, e sim de ser livre para escolher o que lhe faz feliz.
Na modernidade líquida, os vínculos humanos têm a chance de serem rompidos a qualquer momento, causando uma disposição ao isolamento social, onde um grande número de pessoas escolhe vivenciar uma rotina solitária. Isso também enfraquece a solidariedade e estimula a insensibilidade em relação ao sofrimento do outro.
Esse tipo de isolamento parece ser uma contradição da globalização, que aproxima as pessoas com a tecnologia e novas formas de comunicação. Mas se tudo ocorre com intensa velocidade, isso também se reflete nas relações pessoais. As relações se tornam mais flexíveis, gerando níveis de insegurança maiores. Ao mesmo tempo em que buscam o afeto, as pessoas têm medo de desenvolver relacionamentos mais profundos que as imobilizem em um mundo em permanente movimento, que é o caso de Thelma.
O medo de descobrir outras coisas na vida, que fujam do padrão imposto pela sociedade, impede grande parte das pessoas de serem felizes como realmente são. Elas se trancam dentro de um mundo, como uma espécie de “escudo”, para não serem atingidas pelas vozes de julgamento e ordens.
Bauman entende que a nossa sociedade teve uma maior emancipação em relação às gerações anteriores. A sensação de liberdade individual foi atingida e todos podem se considerar mais livres para agir conforme seus desejos. Por terem mais coragem de expor seus sentimentos e acabam ganhando força, ao perceber que milhares de pessoa se sentem da mesma maneira e acabam lutando juntos por seus ideias, descontruíndo alguns dos “tabus”.
Mas essa liberdade não garante necessariamente um estado de satisfação. Ela também exige uma responsabilidade por esses atos e joga aos indivíduos a responsabilidade pelos seus problemas.