Além dos lançamentos de grandes filmes como Indiana Jones e ET, os anos 80 também foram marcados para Steven Spielberg com o lançamento de A Cor Púrpura, longa baseado no livro de mesmo nome sobre duas irmãs que se separam na infância. Depois dos blockbusters, Spielberg comandou esse drama, mais realista e menos fantasioso e que acabou por ser um relativo sucesso na época ao garantir mais de 11 indicações ao Oscar, inclusive Melhor Filme, mas que infelizmente não levou nenhum troféu para casa, onde, talvez, o maior legado do filme é ter se tornado um clássico nos anos posteriores.
Assim, depois de um tempo e muita coisa ter mudado de lá para cá, Hollywood lança agora uma nova versão de A Cor Púrpura, agora pelas mãos de Blitz Bazawule (que ganhou uma maior notoriedade depois de dirigir Black Is King da cantora Beyoncé) que assume o comando dessa história que tem o envolvimento novamente de Spielberg na produção, e ainda conta também com Oprah Winfrey, que recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo longa original.
Em um paralelo curioso com a próprios eventos que envolvem as irmãs Celie e Nettie, a jornada dessa história aqui acaba por fechar um círculo completo, afinal, Bazawule, Spielberg e Winfrey, junto com um elenco de nomes conhecidíssimos, conseguem fazer com que o novo A Cor Púrpura (The Color Purple, 2023) consiga trazer a trama sofrida de duas irmãs para uma nova roupagem, mais moderna, atualizada para o momento, e sim, músical.
E assim, fica o sentimento que a dor das irmãs Celie e Nettie é amplificada nessa nova versão de A Cor Púrpura que acaba por tentar fazer uma versão menos deprê e mais “girl power” para essas jovens separadas quando crianças e que se reencontram mais de 30 anos depois.
O elenco carismático e extremamente bem escalado é o que dá o tom para o filme e realmente é um dos melhores elencos da temporada 2023-2024, sem dúvidas, mas ao mesmo tempo é o próprio filme, sua temática e a sua própria história que sabota a experiência de se assistir A Cor Púrpura.
Os personagens cantam e dançam enquanto as jovens irmãs passam maus bocados na infância, aqui, nessa “fase”, interpretadas por Phylicia Pearl Mpasi como Celie e Halle Bailey como Nettie, enquanto vivem com o padrasto Alfonso (Deon Cole) as trata da pior forma possível e as obriga a trabalhar na loja da família no começo do século XX.
E sim, por mais que Mpasi e Bailey tiram de letra recriar essa amizade de irmãs cheia de inocências, curiosidades e vontade de conhecer e aprender, o longa também fica meio em cima do muro sobre o que mostrar tudo de ruim que acontecia com elas.
Não é sobre colocar esses personagens numa caixinha, onde só temos que ver os momentos ruins e só ver elas sofrendo, mas sinto que o roteiro de Marcus Gardley (adaptado da peça que por sua vez foi adaptado do livro de Alice Walker) é muito 80 ou 8, não sabe navegar direito entre esses diversos momentos, e principalmente, não consegue muito separar os dois lados das situações que essas duas jovens irmã viviam.
Nem mesmo quando a trama avança um pouco e vemos Celie se mudar para a casa de Mister (Colman Domingo, num ótimo ano no cinema em seu segundo filme na temporada), basicamente vendida adolescente para esse cara mais velho para basicamente fazer a faxina, preparar a comida, ficar esperando a noite por ele na cama, e claro cuidar dos filhos dele, e Nettie decide sair de casa do padrasto por basicamente os mesmos motivos.
As coisas chegam a ficarem um pouco mais balanceadas quando a história avança no tempo, as personagens já estão adultas, mas Nettie não está com a irmã depois que o seu marido expulsa a cunhada de casa (depois de avançar sobre ela também).
Claro, não vou dizer que os números musicais de A Cor Púrpura não são incrivelmente bem feitos, por que eles são. Chamam atenção, abusam de músicas que fogem do padrão para um musical tradicional, são extremamente bem cantadas e realmente dignas de estarmos no melhor lugar da casa vendo a peça se desenrolar na nossa frente. Mas também o tom emotivo é diluído por conta dos trágicos acontecimentos com a agora sozinha no mundo Celie (Fantasia Barrino, dá o nome aqui e também participou do musical na Broadway) vive.
A história de empoderamento de Celie em A Cor Púrpura é então contada aos poucos, quase num ritmo de tartaruga na medida que com o apoio de outras mulheres que cruzam sua vida, ela começa a enxergar as barbaridades que o marido, e o mundo de maneira geral, fazia com ela. Assim, acho que A Cor Púrpura deixa o lado mais melancólico e triste que cerca a protagonista para focar em desenvolver um pouco mais outros personagens, um pouco mais animados, mesmo que também estavam vivendo seus próprios infernos particulares. Seja a geniosa nora, a sem papas na língua Sofia (Danielle Brooks que reprisou o papel da peça agora no filme e está espectacular aqui) ou a deslumbrante e deslumbrada cantora Shug Avery (Taraji P. Henson).
Se estruturalmente, narrativamente falando, A Cor Púrpura dá uma escorregadinha, Bazawule garante que vai contar, e celebrar, as coisas positivas, e os tópicos mais alegres dessa jornada de libertação feminina da forma mais colorida possível. E quando você esquece que esses personagens estavam ali passando por situações horríveis, sofrendo xingamentos, ataques verbais e físicos, dá para impressionar com o trabalho da produção, seja das locações utilizadas para o filme, nos figurinos (principalmente de Shug Avery) e tudo mais.
E mesmo com os altos e baixos, a trama garante aqui algumas boas reviravoltas, tem bons momentos e tem boas cenas (as de Brooks na frente do bar do marido, o número musical na loja de Celie abre já bem mais velha). E tudo isso se dá pelo elenco incrível escolhido aqui. De Barrino que está ótimo para Henson num papel feito para ela e que ela acerta o tom o tempo todo. Até mesmo para os outros personagens coadjuvantes como Harpo (Corey Hawkins de volta aos musicais depois de Em Um Bairro de Nova York), o pai do filho de Sofia e enteado de Celie, e até mesmo Elizabeth Marvel como uma socialite racista e Primeira-Dama da cidade os personagens vivem.
Enquanto luta contra as adversidades, e fica na esperança de reencontrar a irmã, vemos que Celie vai sair do seu casulo e se transformar numa bela borboleta da cor púrpura vestindo uma calça sob medida da Srta. Celie. E o trabalho de Barrino para fazer essa transição da personalidade, da atitude, da forma como a atriz marca sua presença em tela é um trabalho louvável.
No final, o que temos é um musical liderado por uma mulher preta, pobre, e que até pode ser feia, mas que entrega um espectáculo visualmente caloroso de se assistir com os vocais marcantes e potentes de seus atores. Claro, A Cor Púrpura, talvez, sim se beneficiaria mais em ser apenas mais um drama, por conta da história que é contada, e em ser um remake mais tradicional da versão para os cinemas que foi lançada tantos anos atrás, e não tanto da versão musical da Broadway, mas nada impede dele estar aqui e fazer acontecer.
A Cor Púrpura está em cartaz nos cinemas nacionais.